Episodio 8: Destrinchando o Mal
- thiagopined
- 4 de nov. de 2024
- 12 min de leitura

Falamos muito sobre o caso do Vampiro de Niterói. Marcelo Costa de Andrade ficou conhecido em 1991 por ter assassinado e abusado de 14 meninos na região de Niterói, São Gonçalo, Itaboraí, grande Rio e Minas Gerais. Nesse último episódio dessa temporada, no entanto, te convido a fazer uma reflexão sobre o bem e o mal, e como a sociedade define isso.
AVISO: A história a seguir contém cenas fortes de violência infantil, portanto não é recomendado para pessoas sensíveis ao tema e menores de 18 anos. Todas as informações contidas foram retiradas de fontes públicas. Quaisquer solicitações, favor, enviar um e-mail para luzesombrapodcast@gmail.com.
Ao longo dos tempos, a humanidade tentou entender o que é a maldade, o que leva alguém a cruzar a linha entre o que é aceitável e o que é impensável. E há uma frase que traz essa questão de maneira poderosa, que mencionei no primeiro episodio desse podcast: ‘o homem é o lobo do homem’, dita por Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVII. Segundo Hobbes, o ser humano é essencialmente egoísta e, quando colocado em uma situação de liberdade total, tende a agir com violência e crueldade. Em outras palavras, somos predadores em potencial, preparados para atacar a qualquer momento. Mas será que Hobbes estava certo?
Quando olhamos para casos extremos, como o do Vampiro de Niterói, já temos em mente o monstro que ele é. Marcelo Costa de Andrade, responsável por uma série de assassinatos brutais em 1991, encarnou essa ‘loucura do lobo’, agindo como um predador que caçava suas vítimas. Mas o que o levou a agir assim? Seria ele um produto de sua própria natureza sombria, ou teria a sociedade falhado em conter essa natureza? Hoje, ao revisitar esse caso, vamos explorar se o mal está realmente dentro de nós ou se é algo que construímos. E, para isso, vamos olhar para um dos experimentos mais perturbadores da psicologia e para um livro que confronta nosso conceito de mal.
Eu sou Thiago Pined e você está ouvindo ao ultimo episodio dessa temporada de Luz e Sombras: O Caso do Vampiro de Niterói”
Episodio 8: Destrinchando o Mal
Ao longo dos episódios anteriores, acompanhamos a trajetória de Marcelo Costa de Andrade, desde uma infância de sofrimento até os crimes chocantes que cometia, convencido de que havia uma espécie de ‘redenção’ em seus atos. Andrade nasceu em um ambiente marcado pela pobreza extrema e pela violência doméstica, observando sua mãe ser agredida regularmente pelo pai. Aos cinco anos, foi enviado para morar com os avós, mas retornou ao Rio aos dez, apenas para viver entre ruas e casas de acolhimento sem supervisão ou apoio emocional. A vida de Andrade o levaria a caminhos solitários, e, ao longo de sua juventude, ele acabou sobrevivendo nas ruas por meio da prostituição, sem a chance de construir uma estrutura emocional ou moral sólida para si próprio (Saiba mais AQUI e AQUI).
Em 1991, Andrade começou a se aproximar de meninos de rua em Niterói. Prometia-lhes dinheiro, brinquedos, ou um lugar para se abrigarem, e logo conquistava sua confiança para atraí-los a locais isolados. Foi em abril daquele ano que seu primeiro crime foi registrado. Em uma de suas abordagens, ele convenceu um garoto a acompanhá-lo sob o pretexto de realizar um ‘ritual religioso’. Contudo, ao tentar abusar da criança, esta resistiu, e Andrade a agrediu com uma pedra, estrangulando-a em seguida. Essa foi a primeira de uma série macabra que continuaria durante oito meses (Saiba mais AQUI).
O segundo assassinato levou Andrade a um novo ritual que o marcaria como o ‘Vampiro de Niterói’. Após matar Anderson Gomes Goulart, de 11 anos, ele coletou o sangue da vítima e o armazenou em uma vasilha para bebê-lo mais tarde, convencido de que isso purificaria as almas das crianças. A crença de Andrade era uma distorção grotesca de preceitos religiosos que ele assimilou, pois acreditava que matar crianças seria um ato de ‘salvação’, garantindo-lhes um destino no céu. Andrade se tornou um serial killer com um modus operandi específico, envolvendo ataques de estrangulamento, mutilação e consumo do sangue das vítimas, o que intensificava a repulsa e o horror em torno de seus atos.
Esses crimes rapidamente abalaram a sociedade, especialmente após a morte de Ivan, um garoto de seis anos, cujo corpo foi encontrado em um esgoto. Andrade confessou outros 13 assassinatos quando finalmente foi preso, descrevendo os detalhes de forma perturbadoramente fria. Ele admitiu que esperava pela polícia, como se soubesse que seus dias de impunidade estavam contados. Sem remorso, ele compartilhou cada detalhe com uma calma assustadora, mostrando um desprezo total pelo sofrimento que causara. Após a prisão, especialistas diagnosticaram Andrade com psicopatia e esquizofrenia, sendo considerado inimputável por sua condição mental e encaminhado a um hospital psiquiátrico de segurança máxima, onde permanece sob avaliação periódica até hoje.
O que o caso de Marcelo Costa de Andrade expõe sobre a natureza humana? Ele foi um indivíduo já marcado pelo sofrimento e pela negligência social desde cedo. Suas ações parecem um espelho sombrio das experiências que o moldaram. Como sociedade, como devemos lidar com alguém que cometeu crimes tão brutais, mas que, ao mesmo tempo, é o produto de uma vida de abusos e abandono? Para responder a essa pergunta, precisamos olhar mais a fundo no que significa o mal e nos fatores que levam um ser humano a cruzar essa linha.
Em 1971, na Universidade de Stanford, o psicólogo Philip Zimbardo deu início a um dos experimentos mais controversos da psicologia moderna, conhecido como o Experimento da Prisão de Stanford. O objetivo era simples, mas profundo: entender até que ponto pessoas comuns podem agir com crueldade quando colocadas em posição de poder sobre outras. Zimbardo dividiu 24 estudantes universitários, pessoas comuns, saudáveis e equilibradas, em dois grupos de forma aleatória – guardas e prisioneiros. Eles estavam dentro de um ambiente controlado, com uma simulação de prisão montada no porão da universidade. Tudo estava pronto para uma imersão que duraria duas semanas, mas ninguém esperava o que estava por vir.
Logo no segundo dia, o experimento começou a fugir do controle. Os ‘guardas’, munidos de uniformes e óculos escuros, começaram a abusar de sua autoridade, impondo humilhações psicológicas aos ‘prisioneiros’. Eles deram ordens severas e inventaram punições cada vez mais degradantes. Em poucos dias, os prisioneiros começaram a manifestar sinais de ansiedade extrema e depressão, com alguns chegando ao ponto de ter colapsos emocionais. A pressão e o sofrimento psicológico foram tão intensos que muitos prisioneiros aceitaram submissamente as ordens, e até mesmo as humilhações, enquanto outros tentavam se rebelar, apenas para enfrentar ainda mais punições.
Zimbardo, inicialmente um observador neutro, percebeu que ele próprio começava a agir como um ‘diretor de prisão’, envolvendo-se de maneira emocional e permitindo que a situação escapasse ainda mais de seu controle. Em seis dias, o experimento teve de ser interrompido. O que deveria ter durado duas semanas foi encerrado em menos da metade do tempo, pois o sofrimento e a crueldade demonstrados pelos guardas já haviam ultrapassado qualquer expectativa. Zimbardo cunhou o termo ‘efeito Lúcifer’ para descrever esse fenômeno: a capacidade de pessoas comuns cometerem atos de crueldade extrema quando têm poder absoluto e estão em um ambiente que permite e incentiva essas ações.
O Experimento de Stanford mostrou que o poder e a falta de limitações externas podem desencadear um lado sombrio que existe em todos nós, um lado que, talvez, seja moldado mais pelo contexto do que pela nossa personalidade. Zimbardo sugeriu que, quando colocados em posições de controle, mesmo pessoas ‘comuns’ podem ser levadas a agir com extrema violência, a ponto de perderem qualquer empatia pelo outro. O estudo foi muito criticado, mas também aclamado por revelar que o mal não é apenas uma questão de ‘pessoas ruins’, mas também de circunstâncias que incentivam ou permitem que o lado mais obscuro se manifeste.
Reflexão sobre Marcelo Costa de Andrade: “Então, como o caso de Marcelo Costa de Andrade se relaciona com essa ideia? Andrade, assim como os guardas no Experimento de Stanford, passou grande parte de sua vida em um ambiente abusivo e negligente. Desde criança, ele viveu em uma casa onde a violência era normalizada, onde presenciou o pai agredindo a mãe e onde, mais tarde, ele mesmo foi vítima de abusos e negligência enquanto estava nas ruas e em instituições. Esse histórico de abandono e violência moldou sua percepção do mundo e o que ele via como aceitável ou não. Em algum momento, Andrade começou a acreditar que havia uma espécie de lógica em seus atos – uma missão distorcida de purificação e redenção das crianças que atacava.
A grande lição do experimento de Zimbardo é que o mal não nasce em ambientes normais, mas sim nas sombras de contextos opressores e impunes. A violência e o abuso fazem parte da construção do ‘monstro’. E o caso de Andrade levanta uma questão desconfortável: será que, com uma infância menos traumática, ele poderia ter seguido outro caminho? Será que o ambiente violento o moldou, assim como o experimento moldou aqueles jovens estudantes, fazendo com que o seu ‘lobo interior’ viesse à tona?
O que o Experimento de Stanford revela é que o mal pode ser uma combinação de poder sem controle e ambiente negativo. Não é uma semente, mas algo que pode germinar em condições certas. Marcelo Andrade foi exposto a essas condições por toda a sua vida – desde o abandono e o abuso até a solidão das ruas. Ele pode ter cruzado uma linha, sim, mas talvez essa linha tenha sido construída ao longo de anos e anos de sofrimento. O experimento nos faz refletir que, se pessoas comuns podem ser levadas a agir de forma cruel e opressora, será que pessoas expostas a um ambiente brutal por toda a vida podem ser levadas a agir como ele agiu?
A questão do mal sempre foi cercada de mistério e controvérsia. O que realmente significa ‘ser mau’? Será que o mal é algo nato, presente em algumas pessoas e ausente em outras? Ou será que ele é algo que pode ser construído, moldado pelas experiências e pelas condições que enfrentamos ao longo da vida? Julia Shaw, psicóloga e autora do livro Evil, aborda essas questões de forma intrigante. Segundo Shaw, o mal não é uma característica inata das pessoas, mas sim um conceito construído socialmente, um rótulo aplicado a comportamentos extremos, que quase sempre têm raízes em uma combinação de fatores, incluindo traumas, influências culturais e até mesmo percepções que outros têm de nós.
Para Shaw, o que chamamos de ‘mal’ muitas vezes é resultado de contextos específicos, onde influências externas moldam comportamentos e atitudes. Ela explica que indivíduos não nascem com a intenção de cometer atrocidades; em vez disso, eles podem ser conduzidos a essas ações devido ao impacto cumulativo de eventos e condições traumáticas. É como se o mal fosse uma resposta a um ambiente adverso, um reflexo de circunstâncias externas que ultrapassam o controle pessoal. Shaw sugere que essa construção é alimentada não apenas pelo trauma, mas também pela maneira como a sociedade reage a esses indivíduos, rotulando-os como ‘monstros’ sem levar em conta a complexidade de suas histórias e motivações.
Um dos conceitos mais fascinantes que Shaw explora é o da ‘cegueira moral’. Ela argumenta que atos de extrema crueldade muitas vezes são justificados internamente pelas próprias vítimas, que acreditam estar fazendo algo certo ou até mesmo ‘bom’. Pensemos em Marcelo Costa de Andrade: durante os interrogatórios, ele afirmou que suas ações representavam uma forma de ‘purificação’, uma maneira de ‘salvar’ as almas das crianças. Para ele, isso era um ato de misericórdia, um ato justificado e até moral, apesar de sua distorção extrema. Shaw nos leva a entender que pessoas como Andrade podem verdadeiramente acreditar que suas ações têm um propósito positivo, o que é extremamente perturbador, mas crucial para entendermos o fenômeno do mal.
Marcelo Costa de Andrade é o exemplo perfeito de alguém que, aos olhos da sociedade, carrega o rótulo de ‘monstro’. Mas, como Shaw argumenta, essa perspectiva pode ser limitante e superficial. Andrade teve uma infância marcada por abusos, negligência e abandono. Ele foi, ao longo de sua vida, exposto a traumas que moldaram sua visão de mundo e, de certo modo, sua noção de moralidade. Shaw sugere que, ao rotular alguém como Andrade de maneira tão imediata, perdemos de vista o contexto que o moldou. Ao fazer isso, também perdemos a oportunidade de aprender sobre os fatores que podem levar uma pessoa a cometer atos tão brutais, talvez até prevenindo que situações semelhantes se repitam.
Outro ponto levantado por Shaw é que o mal pode servir como um espelho, refletindo não só os indivíduos que o encarnam, mas também as falhas da sociedade ao seu redor. Quando vemos alguém como Andrade, temos a tendência de isolar sua figura, de tratá-lo como um caso à parte, sem considerar o papel que a sociedade, com seus sistemas falhos de proteção e inclusão, pode ter desempenhado em sua transformação. Shaw nos convida a perguntar: quantos traumas Andrade teria sofrido se tivesse recebido algum tipo de acolhimento? Quantas escolhas ele teria feito de maneira diferente se tivesse um suporte emocional ou uma figura estável em sua vida?
No final das contas, o conceito de mal em Evil é muito mais do que apenas uma característica individual; ele é também uma reflexão sobre as condições sociais. Shaw questiona a forma como nós, enquanto sociedade, lidamos com esses indivíduos. Será que, ao rotular alguém como ‘monstro’, estamos nos eximindo de responsabilidade? Ao olhar para alguém como Marcelo Andrade, a sociedade não estaria se esquivando da complexidade e das possíveis falhas que podem ter contribuído para suas ações? Ao ver o mal como uma questão de extremos, acabamos esquecendo que todos nós somos, de certa forma, produtos de nossos ambientes. Shaw nos deixa com uma provocação: se o mal é um reflexo das falhas de nossa sociedade, será que a solução não passa por uma mudança na maneira como acolhemos e tratamos aqueles que estão em situações de vulnerabilidade desde a infância?
Com o conceito de mal abordado por Shaw, o caso de Marcelo Costa de Andrade ganha novos contornos. Ele não é apenas um indivíduo isolado, mas parte de uma narrativa que inclui traumas, contextos e uma sociedade que, muitas vezes, falha em proteger aqueles que mais precisam. Será que, ao reconhecermos a complexidade desses casos, podemos evitar futuros atos de crueldade? Ou será que, ao rotular Andrade como um ‘monstro’, preferimos ignorar que, sob as circunstâncias certas, qualquer um de nós pode ver emergir esse lado sombrio?
Hoje, passamos por uma verdadeira jornada de reflexão e ideias profundas. Partimos da visão de Hobbes, com sua afirmação de que o ser humano é um predador natural, uma criatura cujo instinto de sobrevivência pode se tornar brutal quando fora do alcance de leis ou normas. Foi essa perspectiva que usamos para iniciar nossa análise, perguntando se o mal faz parte da essência humana ou se emerge sob circunstâncias específicas.
Depois, mergulhamos na experiência perturbadora do Experimento de Stanford, um estudo que mostrou o quanto a presença de poder pode rapidamente distorcer nossas noções de certo e errado. Em apenas alguns dias, jovens normais, educados e saudáveis foram levados a se transformar em ‘opressores’, em figuras que impunham dor e humilhação a outros simplesmente porque estavam em posição de poder. Esse experimento nos mostrou que o mal pode não ser uma característica permanente, mas sim uma possibilidade que emerge quando certas condições se alinham.
E então, chegamos às ideias de Julia Shaw, que nos desafia a reavaliar tudo o que pensamos saber sobre o mal. Shaw sugere que o mal não é tanto um traço de caráter, mas um conceito que criamos para categorizar ações e pessoas que nos aterrorizam ou que nos forçam a confrontar a complexidade da natureza humana. Ao descrever o fenômeno da ‘cegueira moral’, Shaw nos mostra que, para algumas pessoas, o que chamamos de crueldade extrema pode ser justificado internamente como algo bom. A história de Marcelo Costa de Andrade, que via seus atos como uma forma distorcida de ‘purificação’, nos faz pensar em quantas vezes estamos inclinados a ver o mal apenas pelo lado de fora, sem considerar as complexas razões internas que podem estar em jogo.
Marcelo Costa de Andrade, o Vampiro de Niterói, é um dos casos mais chocantes da história criminal brasileira. Sua história é perturbadora e trágica, forçando-nos a enfrentar a questão da maldade de uma forma que poucos casos fazem. Ao longo desta temporada, exploramos sua vida, seus crimes e as circunstâncias que moldaram sua trajetória sombria. Porém, ao chegarmos ao fim, ainda nos resta uma pergunta em aberto: o que realmente significa o mal? É algo externo, um ato isolado, ou é algo construído, alimentado pelo ambiente, pelos traumas e pelas falhas de uma sociedade que nem sempre cuida dos seus mais vulneráveis?
Talvez o mal não seja uma característica inata, mas uma consequência — um produto de experiências acumuladas, de traumas pessoais e das falhas sistêmicas ao nosso redor. Ou talvez o mal seja algo que todos carregamos dentro de nós, como um lado sombrio que emerge quando as condições propícias se alinham. A jornada que percorremos levanta uma reflexão aberta, sem resposta definitiva, sobre o que significa ser humano e onde termina a influência do ambiente e começa a responsabilidade pessoal. A essência do mal pode ser um reflexo de quem somos, de nossas falhas e de nossa resistência em enfrentar as partes de nós que preferimos manter escondidas.
Agradeço profundamente a todos vocês por estarem comigo até aqui. Por mergulharem nas sombras, por se permitirem questionar e refletir sobre o que significa ser humano, sobre o que significa o mal. Espero que, depois de tudo, cada um de vocês tenha suas próprias perguntas e, quem sabe, suas próprias respostas. Nos vemos na próxima temporada, e até lá, lembrem-se: as sombras não estão tão distantes quanto gostaríamos de acreditar. O mal, afinal, pode estar mais perto de nós do que imaginamos, refletido nas falhas e nas ambiguidades de todos nós.
Eu sou o Thiago Pined e você ouvia ao ultimo episodio dessa temporada de Luz e Sombra: O Caso do Vampiro de Niteroi. Eta breve!
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